16 de dezembro de 2014

Águas Sempre Fortes


Li os artigos de Roberto Arlt. Terminei o livro numa sintonia contígua com os seus personagens. Arlt não escreveu seus artigos na língua espanhola, o fez com maestria na Língua Porteña, o vocabulário informal da Argentina. A maioria de seus contos aconteceu à luz da Buenos Aires no seu cotidiano nu e cru.
As histórias foram cassadas por Arlt nos cantos, nos becos, nas vilas, nos cortiços e pensões. Enfim, resgatou isso do feio das impressões e das revelações diárias.
Com sua alteza, Arlt, contestou veementemente a crítica pesada que recebera dos seus leitores e até de outros escritores por não usar o vernáculo. Em suas respostas ele dizia estar "dando pelotas"... Se divertindo com o recado.
Interpretou vários de seus personagens trazendo-nos à verdade absoluta. À verdade da vida. Também, nesse contexto, escancarou a maldade... "assim o fiz, assim eu teria feito...”
Foi o crítico do Jornal Argentino "El Mundo" com suas Águas Fortes contestou os políticos mediante uma Argentina enfraquecida frente às crises, principalmente pelo desemprego. Arlt não poupou sua verborragia para com os políticos de um poder medonho e até sepulcral. Chamando-os de "caiados" como se diz no dito popular.
Arlt conseguiu trazer para o nosso conhecimento um sentimento de escárnio pelo homem vagabundo e também mostrou compaixão ao homem solitário escancarando a sua mudez cotidiana. Descreveu a labuta diária, o suor do pão de cada dia internalizado à solidão que é típica do ser humano. A solidão da gente. Uma solidão que às vezes é revoltante. Arlt foi um solitário.
Soube também decodificar o sujeito mais abusado e a ele lançar um olhar perturbador. Aquele olhar de inquisidor apanhando a sua presa frente à maldade sutil disfarçada. Aquilo que às vezes é intrínseco na mesquinharia humana. Arlt se apoiou, por exemplo, nos contos russos de Dostoiévski e que ninguém como Dostoiévski descreveria tão bem os pecados dos homens.
Arlt tinha um olhar voltado para o fato presente, observador, até para aqueles que não queria revelar o seu segredo ele fazia diante da sua calada inquietação e do articuloso ofício da sua função numa linguagem direta e totalmente objetiva.
Em algumas de suas faces Arlt foi doce e complacente. Em outros artigos mostrou simpatia até mesmo com o abanar do rabo de um cachorro. Arlt sabia elogiar e quando elogiava era carinhoso. Seus leitores não poderiam supor o que sairia daquela cabeça tão brilhante, que na linguagem de hoje, poderíamos dizer que seria apertar a tecla enter para descarregar um texto pronto.
Arlt foi aquele tipo de cidadão que congelava, paralisava e ao mesmo tempo se divertia com o torto e com aquele que ditaria às verdades colocando-as como regras de prática decidida e desmoronando as bases existentes. Ao mesmo tempo conseguia encantar os de bom coração.
Arlt fez de seus parceiros um objeto de estudo despertando-lhes a vontade de beberem de algum licor da verdade e aos poucos a demência do cidadão se aconchegaria e iria se desenrolando as repressões mais contidas.
E ele Arlt saberia manipular essas informações e ainda saberia dar o seu veredicto em se tratando de uma sinceridade ou de uma truculência. Não existiu um Arlt flexível. Ele era ou não era. Como se os nossos pecados e defeitos estivessem diante de um deus que passaria as mãos nos nossos cabelos e depois diria: Se você o fez e foi sincero ele entenderá e se não entender o que lhe importa? Ali é "você e você".
Arlt tratou a perfeição como imperfeita e ditava suas normas. O que tem por trás daquela janela com as luzes ainda acesa? Ele era um curioso e um revelador dos segredos. Simulava as questões do interior de cada um. Quem não tem uma particularidade ou uma besteira qualquer que o tenha feito ou que mencionaria em alguma hora ou em algum momento para uma pessoa certa ou errada?
Arlt estaria ali como parte da consciência das pessoas. Um felino afiado com as suas garras colado aos nossos sete pecados. Apanharia a presa pela boca maldita ou daria a ela a liberdade merecida. Fazendo assim escorrer por suas Águas-Fortes Porteñas.

Nazaré Braga

16/12/2014

Fonte: Maria Paula Gurgel Ribeiro - Ed. Iluminuras - 05/2013

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